
Queria dividir com alguém meus dias; alguém que como eu ouvisse sempre com espanto as flautas do Ian Anderson, que comesse pão na frigideira, que morresse de rir de piadinhas infames, assistisse a programas de entrevistas, odiasse gente que se mete a cuidar de nossas vidas, gente que se apagou pro mundo, gente que fala alto em lugares públicos e atende ao celular em locais impróprios.
Queria dividir com alguém meus dias, sejam eles de inverno, até porque são muito bonitos, queria dividir com alguém o meu sofrimento em filas, minha angústia com as desigualdades sociais, as derrotas do Flamengo e meu creme dental.
Seria muito bom dividir com alguém aquele último pedaço de bolo, aquela última ponta de esperança, aquelas manias que até então eram só minhas, e porque não minha cama e cobertor.
Quero dividir com alguém as emoções daquele show do Lenine, a gostosa leitura de um livro e as impressões sobre aquele filme do Almodovar.
Queria dividir com alguém essa ânsia de um mundo melhor, o cuidado com o meio ambiente e a alegria de uma manhã de sábado e de sol a comprar comestíveis de cor verde.
Como seria bom dividir com alguém preliminares e orgasmos...
Não sei se alguém me aturaria em minhas badtrips, mas queria poder dividi-las com alguém, queria contar com alguém, a qualquer momento e em qualquer lugar, pedindo palpites, dinheiro, conselhos e colo.
Quero dividir com alguém meus medos, altura, água fria, elevador, pitt bull e meu inventário de cicatrizes.
Já quis dividir com outro alguém o meu prazer naquilo que faço, já quis dividir com outro alguém as coisas que escrevo e até quis dividir com esse mesmo outro alguém um delicado e possível romance, foi difícil a partilha.
Hoje, decididamente, eu quero dividir com alguém minha conta bancária, minha paixão pelas crianças e animais e os palpites nos jogos de marcar números.
Hoje, também e definitivamente eu queria poder dividir com alguém todas as minhas dores, as do corpo e as da alma.
Poderia ser pra amanhã, mas eu ainda iria querer dividir com alguém esse tanto que ainda resta de mim, o que me coube e sobrou de tantas outras divisões.
Ainda penso que das sobras, sobrou um tanto assim de tempo, pra quem sabe dividir os meus últimos “subir e descer” de escadas e de humor.
Quero dividir com alguém nosso inevitável envelhecimento e nossa coragem de ainda assim nos amarmos.
Quero dividir tudo o que de bom eu tenho e que não deve ficar se enchendo de mofo nas gavetas do egoísmo.
Amor se divide e não deve ser lá muito bom, não deixar alguém chorando, porque até a morte se divide.
Que eu tenha tempo pra tantos desejos e partilhas.