sexta-feira, 28 de setembro de 2007

DO BOI SÓ SE PERDE O BERRO

Desembarquei em Madrid sem luvas e, mesmo antes da burocracia oficial de qualquer aeroporto, minhas mãos foram mudando de cor, um roxo pastel foi rompendo pelas pontas dos dedos e me imobilizando de qualquer tentativa da mais simples movimentação fraterna como um aperto de mãos. Cravados 4 graus na terra de Salvador e, dali víamos uma névoa que cobria o tráfego intenso dos veículos na avenida Irarrazabal.
Eu e a Espanha, sou franco e francamente é um caso de amor antigo, não seria alguns graus abaixo dos de Copacabana que me desanimariam de vislumbrar os feitos de Gaudi.
Teresa nos recebeu, era só sorrisos, adentramos, agora já com luvas, em seu carro, pequeno mas funcional, seguimos por ruas que meu cansaço não me deu o prazer de observar, em casa, um apartamento singelo mas confortável, senti o calor de aquecedores a todo vapor, só então pude tirar o peso das lãs e me entregar a um banho merecido.
Na pequena sala não se falava em outra coisa que não fosse a "Corrida del toros" , essa coisa de touradas nunca me deu muito prazer, sempre tive a imagem de animais indefesos carregados de lanças ornadas de flores na extremidade, ima tremenda covardia.
Não me espantei que entre os meus apelos em ver Mirós e Picassos, venceu a tal tourada.
Alberto parecia uma criança, afinal foram horas de vôo e seu maior desejo era definitivamente assistir a esse massacre sangrento, em que é difícil saber quem na verdade é o animal irracional.
Eu, voto vencido, me vesti, sem esquecer as luvas, para o tal espetáculo de horror.
Durante todo o percurso, contava histórias de toureiros famosos, inclusive um certo avô seu, que mostravam sua bravura na areia das arenas. Eu já havia me convencido que seria um belo programa, ficariam os Mirós para o dia seguinte.
A frente do que parecia um estádio de futebol, não vi bandeiras do glorioso flamengo, mas, uma multidão de pessoas que, como Alberto torciam todas pelo mesmo time.
Cartazes anunciavam o grande confronto entre uma jovem promessa das arenas e um animal que havia sido treinado intensamente pra odiar humanos, tamanha prova de coragem.
Juan Pablo de Sevilha versus El Niegro, um macho de 500 kg portador de belos pares de chifres.
O público se fazia crescer, não era lá um Fla x Flu, mas, era prenúncio de casa cheia. Shows com palhaços iam nos distraindo até que seria o grande momento da noite. Um locutor anuncia em um espanhol galego o que seria o início do grande duelo.
Entra em campo um rapazote com roupas que pareciam não lhe deixar respirar, porém de uma muito extravagante elegância, acenou para o público movimentando uma espécie de chapéu que me lembraram aqueles que imitam as orelhas do Mickey comprados na Disney. A galera, enlouquecida gritava seu nome, me lembrei de Zico, este era o tal Juan, que até então eu não conseguia entender a troco de que, enfrentaria um trator chifrudo até saber que ao final da peleja aumentaria consubstancialmente sua fama e sua conta bancária.
O circo estava armado, mocinhas simulando desmaios e o tal Juan se preparando para a grande batalha.
Faltava ele, o coadjuvante, sem qual não haveria espetáculo. Soaram cornetas, trumpetes, trompas ou trombetas, sei lá, a adentra a arena deixando marcas na areia um animal enorme de pelo muito negro visivelmente assustado. Delírios gerais, o pobre animal, sem nada entender, se jogava em direção aos tapumes de madeira, em uma clara demonstração de desespero, naquele momento, tive pena e confesso, passei a torcer por ele.
Juan heroicamente, desenrola e chacoalha uma espécie de bandeira vermelha em direção à fera, El Niegro se atirava cegamente em sua direção e era driblado habilidosamente pelo misto de atleta e galã. A cada investida e drible, o touro parecia visivelmente mais irritado, com isso já fazia investidas por todos os lados, tendo o toureiro que chamar-lhe a atenção com o tal pano vermelho, seqüências de dribles elegantes, bem pensados mas, de fato muito perigosos. O público estava então em total êxtase com a humilhante superioridade da raça humana.
De onde não sei apareceram "contra-regras" com espadas reluzentes que, a medida que Juan ia desfechando golpes no pobre animal, cravando-lhe a lâmina na carne, iam-lhe lhe repondo o estoque de espadas, que para o meu já total desespero, não pareciam acabar, era um espetáculo que pra mim se fez de extremo mal gosto.
O animal já cambaleante e soltando urros de uma dor intensa, marcava a areia clara com a tinta vermelha de seus coágulos de sangue, motivos para mais delírios da platéia, eu não conseguia ver nenhum prazer naquilo, quis ir-me dali, não ser testemunha daquela barbárie, mas os meus, me impediram tentando me mostrar alguma graça naquilo tudo.
El Niegro, já não parecia aquela ameaça que a princípio aterrorizava, que se impunha. Era agora um fragmento do que se podia chamar de um puro sangue e, era sim puro sangue, seu negro pêlo, luzia agora o brilho vermelho do plasma que derramavam das feridas abertas, lhe tirando a força de manter-se em pé.
Em um último grito de agonia, deixou cair seus tantos quilos no centro da arena e uma cena dantesca, Juan o herói lhe desfechou o golpe de misericórdia.
Não vi comemorações, não vi nem mesmo como saímos da arena, a imagem que me ficou na memória, ainda hoje, me trouxe uma angústia e um desprezo enorme pelo ser humano, que se delicia com a dor.
Mais um animal morreu e dele tudo se aproveita, mas fica o berro, esse não se consome, ecoa em minha memória como um grito de apelo, como um fantasma. Nem Miró, Picasso e Dalí me trouxeram a beleza que fui buscar na querida Espanha, vislumbrei Gaudi, e o que vi foi que a raça humana sabe fazer coisas bem mais belas que negar que todas as espécies vivas, são filhos de único ser criador,mesmo pai, e que não se separa em espécies, não se classifica, não se destrói, aquilo e aqueles que ainda não aprendemos a entender.

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